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O Aprendiz: uma sátira que se torna alvo da própria piada?

Um retrocesso verdadeiramente inesperado. Há um ano, Donald Trump era réu em quatro processos penais, suas contas nas redes sociais haviam sido banidas por declarações acaloradas e disseminação de informações falsas e seu status como candidato presidencial Republicano ainda não estava decidido.

Hoje, Trump acaba de ser eleito o 47° presidente dos Estados Unidos.

Esse resultado evidencia o desespero dos americanos. Apesar de terem testemunhado inúmeros absurdos, mentiras, escândalos, e comportamentos inapropriados de Trump, as pessoas ainda estavam dispostas a colocá-lo no poder por mais quatro anos. Talvez esse até seja um dos acontecimentos mais absurdos na história eleitoral dos Estados Unidos.

Mas os adversários de Trump eram opções melhores? Não necessariamente. O lançamento recente de O Aprendiz, um filme biográfico sobre Trump produzido por cineastas liberais, revela exatamente onde o Partido Democrata falhou.

Do início ao fim, o filme emprega um tom satírico para descrever como um homem vulgar e tolo torna-se um monstro sinistro. Assim como o SNL e outros programas de comédia, o filme faz uma caricatura de Trump, mas não oferece nenhuma visão inovadora sobre ele, nem analisa as razões inevitáveis pelas quais uma figura tão controversa ganhou destaque nos Estados Unidos.

No final das contas, só podemos dizer que os Democratas não entendem Trump nem os eleitores que desejam conquistar — na verdade, eles não entendem nem os próprios Estados Unidos.

O Aprendiz leva o mesmo nome que o reality show de Trump, mas o filme não se concentra em suas peripécias na TV; em vez disso, aborda sua relação mestre-aprendiz com o notório conservador americano Roy Cohn.

Pode ser difícil reconhecê-lo imediatamente, mas ao descobrir quem ele conhecia e as coisas que ele fez, é possível ter uma ideia da marca significativa que ele deixou na história dos Estados Unidos no final do século XX. Além de ser o mentor de Trump, ele foi secretamente conselheiro de dois presidentes Republicanos, Nixon e Reagan, muitas vezes usando métodos questionáveis para livrá-los de crises e silenciar os adversários.

Contudo, o infame Cohn ficou mais conhecido na era McCarthy. Ao colaborar com seu amigo íntimo Joseph McCarthy, ele perseguiu violentamente esquerdistas americanos e desempenhou um papel fundamental no julgamento que levou à execução de um casal, Julius e Ethel Rosenberg, que foram acusados de espionagem — mais tarde, descobriu-se que o processo estava cheio de erros judiciais.

Não há dúvidas de que Cohn foi uma figura impiedosa que ignorava qualquer noção de ética. Sua representação ganhou destaque na peça de Tony Kushner, Angels in America. Na adaptação para a TV, produzida por Mike Nichols, ele é interpretado por Al Pacino — um ator conhecido pelos papéis de gângster, ou seja, uma escolha bem condizente.

Em O Aprendiz, os métodos de Cohn ficam extremamente claros desde o início. Na mesa de jantar, quando ele e Trump se encontram pela primeira vez, Tony Salerno, um notório chefe da máfia de Nova York no século XX, junta-se a eles. As táticas de intimidação, ameaça e chantagem de Cohn refletem as da máfia, pois ele usa artimanhas típicas de gângster para confundir políticos e advogados que não estão familiarizados com seus esquemas.

Ao entrar para o mundo de Cohn, Trump aprende três princípios básicos com seu mestre:

Ataque, ataque, ataque.

Negue tudo.

Nunca admita derrota.

Hoje, percebemos que Trump dominou perfeitamente esses princípios.

Os últimos anos de Roy Cohn foram marcados por tragédias. Depois de uma vida repleta de más condutas, pareceu um carma quando ele contraiu o vírus do HIV e sofreu no leito de morte. Quando Cohn ficou doente pela primeira vez, Trump até evitou qualquer contato com ele, aparentemente temendo que o vírus pudesse se espalhar até mesmo pelo telefone. No final, porém, o aprendiz ainda prestou homenagem ao mestre.

No filme, o arco do personagem de Cohn é completo. Se fosse uma biografia somente dele, talvez tivesse recebido mais elogios.

Porém, Cohn ocupa apenas cerca de metade do tempo de tela em O Aprendiz. A outra metade é dedicada a satirizar as várias loucuras e os comportamentos vulgares de Trump: sua obsessão com o penteado, seus problemas de imagem, seus hábitos de beber Coca-Cola e tomar pílulas dietéticas, sua objetificação das mulheres e sua manipulação dos membros da família, entre outras palhaçadas.

O problema é que agora já conhecemos todos os absurdos de Trump. Sabemos que ele é tanto um palhaço quanto um tirano; tanto um homem grosseiro quanto um estrategista ambicioso que transforma ideias vulgares em realidade. Qual é o objetivo de repetir algo que já é de conhecimento geral? Sem apresentar novas perspectivas, um filme biográfico sobre Trump em pleno 2024 só pode ser considerado um fracasso.

O Aprendiz pode ter tido sucesso até a metade do caminho, esclarecendo a era e o clima sociopolítico que produziram Trump. No entanto, ele não consegue se aprofundar culturalmente nem explicar por que Trump é tão popular entre os eleitores conservadores. Isso reflete uma certa arrogância entre os cineastas liberais — eles parecem acreditar que Trump e seus apoiadores são muito vulgares e simplórios para merecer uma compreensão real.

Porém, talvez esse seja o motivo pelo qual os Republicanos perderam eleitores. Os políticos liberais são vistos como muito distantes, muito moralistas e muito hipócritas, tanto que se desconectaram de pelo menos metade dos Estados Unidos. Dado o poder de escolha, parece que os americanos preferem a realidade honesta à virtude vazia porque, pelo menos, a primeira opção oferece alguma substância.

Os políticos liberais dos Estados Unidos precisam refletir sobre isso. E a comunidade politicamente engajada de Hollywood deveria fazer o mesmo.

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