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Lady Gaga é a Arlequina do mundo real?

Em Coringa: Delírio a Dois, Lady Gaga brilha vocalmente; sua performance como Harley Quinn é boa, mas não dá pra fingir que gosto da história do filme. Para deixar claro, estou me referindo à performance forte de Gaga — não à sua interpretação de Harley.

Como alguém que acompanha de perto sua carreira, não questiono as habilidades de atuação de Gaga. Seu papel em Nasce uma Estrela, retratando magistralmente a transformação de uma sonhadora em um ícone da música, diz muito — a performance até lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor atriz. Além deste filme, a presença de Gaga em American Horror Story provou que suas habilidades de atuação não foram um acaso único. Ela assume um papel extremamente carismático na série, com uma interpretação distante, sedutora e marcante, mostrando sua capacidade de incorporar personagens complexos e multifacetados. Esses papéis me convenceram de que Gaga é muito mais do que apenas uma cantora pop — ela é uma atriz capaz de transmitir profunda complexidade emocional nas telas.

Enquanto assistia Coringa: Delírio a Dois, porém, encontrei uma desconexão entre Gaga e Harley. Essa lacuna não só me impediu de me envolver emocionalmente com a personagem, como também atrapalhou minha experiência geral.

Certamente há méritos em sua performance. Seu talento musical anima a narrativa, de outra forma, sem brilho. A abordagem não convencional dela e de Joaquin Phoenix às músicas adicionou uma qualidade rústica e intrigante. Fiquei particularmente surpreso com o quão bem a voz ligeiramente áspera de Phoenix complementou os vocais de Gaga. Os elementos musicais do filme, que servem como um "portal" entre a realidade e a fantasia, se destacam; mas, embora essas cenas tenham funcionado bem, Harley é uma personagem definida pela loucura e uma mentalidade distorcida, bem como conflitos internos profundos — qualidades que são difíceis de capturar apenas por meio da atuação. Acho que esse desafio foi o maior obstáculo para Gaga interpretar a personagem.

Para entender melhor a desconexão que senti, é útil refletir sobre o passado da artista. Sua infância e adolescência não foram nada fáceis. Stefani Joanne Angelina Germanotta — seu nome de nascimento — sofria bullying e era excluída na escola porque não se encaixava nos padrões convencionais de beleza. Era chamada de "aberração" e sujeita a olhares abertamente hostis. Como admitiu, sua adolescência foi marcada pela insegurança e hostilidade do mundo. Esse sentimento de exclusão desempenhou um grande papel em sua decisão de adotar uma moda exagerada e estilos de apresentação extremamente artísticos — foi sua forma de se opor às expectativas sociais e recuperar o controle de sua própria imagem.

Essa necessidade de se rebelar e se redefinir ajudou a moldar a Gaga que conhecemos hoje — uma figura singular na música e na moda. Cada figurino e performance é uma declaração de independência: "Não me importo com o que você pensa, eu sou quem eu sou". E eu a admiro imensamente por isso. Ela nunca se esquivou das críticas, encarando-as e mostrando seu eu mais autêntico e menos convencional para o mundo. Seus figurinos quebram barreiras, mas por trás da excentricidade está sua busca por liberdade, independência e autoconhecimento.

As marcas de insanidade e rebelião de Harley, no entanto, são expressas de forma diferente. Para mostrar totalmente esse contraste, vamos revisitar suas origens: ela apareceu pela primeira vez em Batman: A Série Animada, de 1992, como Dra. Harleen Quinzel, uma psiquiatra que se apaixona pelo Coringa enquanto o trata; esse relacionamento doentio e tóxico é a base para sua loucura.

Sua jornada de uma médica racional para uma cúmplice desequilibrada revela profundas contradições e fragilidades em sua psique. A Dra. Harleen era uma mulher inteligente e bem-educada, mas suas inseguranças e seu desejo desesperado por amor e validação a obrigam a desistir de tudo pelo Coringa. Ela está disposta a aguentar a manipulação emocional e o abuso para proteger esse amor doentio. Em muitas cenas, o Coringa exerce controle sobre ela, tratando-a com indiferença, e ainda assim ela segue voltando para o lado dele, mesmo tendo sido abandonada inúmeras vezes. Essa dinâmica é um exemplo clássico da Síndrome de Estocolmo, com a confusão e a dúvida de Harley a mantendo presa em um ciclo malicioso que não consegue quebrar.

A loucura de Harley não surgiu da noite para o dia; foi o produto de um colapso psicológico lento e torturante. Sua risada maníaca, trajes de desenho animado e martelo exagerado são todos parte da fachada que usa para mascarar o trauma emocional. Sua aparência esconde suas lutas pessoais, enquanto seu comportamento instável serve como uma forma de autodefesa, uma maneira de proteger sua alma danificada. Embora Harley pareça despreocupada e destemida, no fundo, é consumida pela solidão e insegurança. Essa tensão entre sua fanfarrice externa e caos interno forma a essência da personagem.

Por exemplo, em Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (2020), Harley mostra um raro vislumbre de seu desejo por uma vida normal — um contraste gritante com sua persona criminosa. Ela tenta redescobrir sua identidade, se libertar da influência do Coringa e recuperar sua independência. Essa jornada reflete seu crescimento como uma mulher mais independente, embora também destaque sua turbulência interna — ela não está mais buscando a aprovação do Coringa, mas tentando afirmar seu próprio valor.

A característica única de Harley é sua atitude "indiferente". Ela mascara a realidade sombria de sua situação com zombaria, humor e absurdo. Ao contrário de muitos outros heróis ou vilões, Harley não usa o humor para aliviar a tensão, mas como um mecanismo de enfrentamento para esconder suas vulnerabilidades e sofrimento. Esse humor ácido a distingue de outros personagens e a torna ainda mais trágica.

Comparando Harley e Gaga, a loucura da primeira é profundamente interna e alimentada por uma psique danificada. Sua excentricidade decorre de sua confusão interna e pensamentos distorcidos, enquanto o estilo exagerado e a desinibição de Gaga são mais uma rebelião externa — uma declaração contra as normas sociais e uma maneira de recuperar o autocontrole. Harley é interiormente um indivíduo inseguro, cuja autoestima está ligada à validação externa, particularmente do Coringa, enquanto Gaga rejeita ativamente a necessidade de validação dos outros, afirmando controle sobre como ela se apresenta.

Assim, mesmo que Gaga consiga capturar a extravagância e o caos de Harley, ela não incorpora completamente a profundidade psicológica e as lutas internas da personagem. É por isso que, ao assistir Coringa: Delírio a Dois, senti que havia algo estranho em sua interpretação. Gaga parecia ter diluído a complexidade e a psique distorcida de Harley, me impedindo de me conectar completamente com a personagem. Embora o filme entregue visualmente, fica aquém na emoção e no desenvolvimento da personagem.

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